segunda-feira, 2 de abril de 2012

Lendo sobre a velhice: Resenha

O mundo dos velhos, de todos os velhos, é, de modo mais ou menos intenso, o mundo da memória. (Norberto Bobbio)

Da ampla variedade de leituras que tratam do processo de envelhecimento, ou da condição da velhice (às vezes sob a capa eufemística da designação “terceira idade”), selecionamos três, todas elas disponíveis no mercado livreiro: O tempo da memória: De senectute e outros escritos autobiográficos, do pensador italiano Norberto Bobbio; Memória e sociedade, lembranças de velhos, da socióloga brasileira Ecléa Bosi; e A pessoa idosa não existe, do psicanalista francês Jack Messy, citadas na bibliografia. As obras selecionadas dão uma amostragem do amplo interesse que o tema suscita, pois são livros escritos por autores contemporâneos, diferentes em sua formação profissional e sua nacionalidade. Duas abordagens poderiam ser classificadas como externas, as da socióloga e do psicanalista, pois têm o velho como objeto de análise; a outra, do jurista e pensador italiano, é uma abordagem interna, uma vez que ele a escreveu na quadra dos oitenta anos, fazendo considerações sobre seu próprio envelhecimento. Todos os três livros (assim como os demais, sugeridos na lista abaixo) são leituras interessantes, seja como pesquisa, seja como experiência de vida para todo leitor que se aproxima do limiar da velhice.

O tempo da memória: De senectute e outros escritos autobiográficos, de Norberto Bobbio


Norberto Bobbio, jurista e filósofo italiano, nascido em 1909, declara ser filho do século XX, um século breve, como foi chamado, mas marcado por acontecimentos terríveis: duas guerras mundiais, a revolução russa, comunismo, fascismo, nazismo, o surgimento pela primeira vez na história dos regimes totalitários, Auschwitz e Hiroxima, décadas de predomínio do terror, e então, depois da queda do império soviético e o fim da guerra fria, uma ininterrupta explosão, em diversos lugares do mundo, de guerras nacionais, étnicas, tribais, territorialmente limitadas mas não menos atrozes.(p. 51)

E Bobbio entra na velhice propriamente dita, na “quarta idade” dos que adentram os 80 anos, ao mesmo tempo em que sai do seu século, constatando: “cheguei ao fim não apenas horrorizado, mas incapaz de dar uma resposta sensata a todas as perguntas que os acontecimentos de que fui testemunha continuamente me propõem” (p. 52). O tempo da memória são, pois, considerações sobre o passado e o presente, filtradas pela ótica de quem muito viveu e que percebe, na falência do corpo e nos lapsos da mente o preço cobrado pelo tempo vivido. São reflexões sobre o significado da velhice no mundo de hoje.

O volume da Editora Campus tem prefácio de Celso Lafer e apêndice de Pietro Polito, e se divide em duas seções distintas: “De senectute”, título tomado de empréstimo a Cícero, e “Escritos autobiográficos”. É na primeira seção, como o título já deixa claro, que o pensador faz suas reflexões sobre o envelhecimento, aludindo a obras do passado sobre o tema e lembrando que, naqueles tempos recuados, seus autores estavam em geral na faixa dos sessenta anos. Isso já revela o quanto o homem moderno vem empurrando para diante a barreira que separa a idade madura da velhice.

Aos 85 anos, em 5 de maio de 1994, ao ser-lhe conferido o diploma honoris causa em Ciências Políticas, Norberto Bobbio proferiu seu discurso “De senectute” na Università degli Studi di Sassari. O texto desse discurso constitui a Primeira Parte, dividida em quatro subtítulos (1. A velhice ofendida; 2. Mas que sabedoria?; 3. Retórica e anti-retórica; e 4. O mundo da memória) e seguida da Segunda Parte (1. Ainda estou aqui; 2. Depois da morte; 3. Lentidão; e 4. O tempo perdido), textos escritos especialmente para esta edição e que complementam suas reflexões sobre a velhice.

Os “Escritos Autobiográficos”, em número de dez, constituem a segunda seção do volume e se referem a diversos acontecimentos e épocas da vida do eminente jurista e senador vitalício da Itália.
O autor, depois de comparar o status social do velho nas sociedades antigas e no mundo contemporâneo e de buscar explicações para a mudança, constata que a segurança, o conforto e o refúgio do idoso são as suas lembranças do passado e conclui dizendo sobre si mesmo:
Tenho uma velhice melancólica, a melancolia subentendida como a consciência do não-realizado e do não mais realizável. A imagem da vida corresponde a uma estrada cujo fim sempre se desloca para frente, e quando acreditamos tê-lo atingido, não era aquele que imagináramos como definitivo. A velhice passa a ser então o momento em que temos plena consciência de que o caminho não apenas não está cumprido, mas também não há mais tempo para cumpri-lo, e devemos renunciar à realização da última etapa. (p. 31)

A leitura de O tempo da memória, de Norberto Bobbio, dá ao leitor uma visão sensata e sensível das perdas e ganhos trazidos pelo envelhecimento, ganhos expressos sobretudo na humildade em reconhecer seus próprios limites e tentar cotejar passado e presente com um olhar justo, o que só está ao alcance daqueles que também, com o tempo, ganharam em sabedoria, como ocorreu com este pensador italiano.

Memória e sociedade, lembranças de velhos, de Ecléa Bosi
O livro Memória e sociedade, lembranças de velhos, de Ecléa Bosi, originou-se, em 1973, de sua tese de livre-docência em Psicologia Social. O volume, editado por T. A Queiroz, apresenta prefácio de João Alexandre Barbosa, intitulado “Uma psicologia do oprimido”. A própria autora afirma não se tratar de uma obra sobre a velhice, nem sobre a memória, declarando: “Fiquei na intersecção das duas realidades”. Segundo Benedito Nunes, o que ...justifica a longa carreira desse trabalho [...] é o próprio caráter interseccionante da investigação aí empreendida, cruzando a teoria e a prática, a linguagem oral e a linguagem escrita num texto desenvolto, analítico e meditativo, que recorta tanto o domínio das ciências sociais quanto o da tradição humanística.

Depois de uma introdução de bases teóricas, a pesquisadora transcreve depoimentos de oito pessoas – homens e mulheres – maiores de 70 anos, que têm na cidade de São Paulo o seu denominador comum. Todos viveram nessa cidade a maior parte de suas vidas. Viram-na crescer, mudar de aspecto e de população, presenciaram o fluxo migratório em suas várias levas de etnias diversas, viram-na transformar-se em metrópole. Dando voz a esse pequeno grupo de velhos, cuja única riqueza é a sua memória pessoal, Ecléa Bosi recupera um tempo, reconstrói um momento social coletivo, cosendo retalhos de lembranças individuais. Faz pela pesquisa o que Alcântara Machado fizera na literatura com o seu tempo, fixando o modo de viver dos paulistanos não-oficiais, aqueles que não têm senha de acesso à História, mas que a fazem de fato. Aliás, a leitura de Memória e sociedade revela-se muito útil ao leitor de Alcântara Machado, nem sempre apto a entender certas alusões que o ficcionista faz em seus contos.
Benedito Nunes, em comentário ao livro de Ecléa Bosi, destaca a sua importância, ao constatar a situação a que hoje estão relegados os velhos:
A sociedade industrial em que vivemos rompeu esse liame [de elo entre gerações], desvalorizou o saber de experiência, corroeu a memória coletiva, desvalorizou a lembrança; portanto, desapossou a velhice de seu dom à sociedade e à cultura. Da natural condição de sobrevivente de uma geração que ele é, [...] o homem idoso, porque improdutivo [...] passa, acobertado pela etiqueta clínica da “terceira idade”, ao anonimato dos excluídos sem voz.
É isso que o livro de Ecléa Bosi faz, dá voz aos marginalizados pela idade, convida-os a exporem suas lembranças mais antigas e, com elas, recupera um tempo e um modo de viver que, de outra forma, estariam perdidos para sempre.
A pessoa idosa não existe, Uma abordagem psicanalítica da velhice, de Jack Mes
Jack Messy é um psicanalista atuante que trabalha no ramo da psicanálise em Paris há mais de dez anos, sendo atualmente diretor do Centro de Formação da Sociedade AGES. Este livro, que trabalha com a questão da velhice e do envelhecimento, com enfoques teóricos e relatos de casos, destina-se principalmente aos profissionais que lidam com pessoas de idade: assistentes sociais, enfermeiros, médicos, psicólogos e psicanalistas, mas também é leitura de interesse para cada um de nós, que nos aproximamos, passo a passo, da velhice ou que convivemos com velhos em nosso meio profissional ou familiar.
O livro reparte-se em quatro capítulos, antecedidos de um prefácio do autor e seguidos de uma breve conclusão. No prefácio, o autor expõe seu propósito, contestando noções sedimentadas em nossa cultura:
Este livro tenta tomar posse de novo de nossa inscrição no tempo e de nossa vida em sua história. A velhice não é uma passagem obrigatória para a morte, assim como a demência não é uma ameaça em contrapartida de uma idade avançada, como parece ser a promessa aos decênios que ultrapassam nossas expectativas. (p. 10)

Com relação ao título do livro – A pessoa idosa não existe – explica tratar-se mais do que uma simples provocação, tendo em vista que a idade é irrelevante em si para uma abordagem psicanalítica, pois que ela não interfere na psique. “Os processos do sistema inconsciente estão fora do tempo, a relação temporal é do âmbito do sistema consciente”, esclarece. No tratamento psicanalítico, estão em jogo os desejos e conclui: “Na circulação da libido não há jovem nem velho, o desejo não tem idade” (p. 10).

O primeiro capítulo, “O espelho quebrado”, repartido em treze seções, discute vários aspectos ligados ao processo de envelhecimento: as perdas (da própria identidade física, da beleza, da independência, da memória, etc) e também os ganhos. Sobre estes o autor se detém na seção “O envelhecimento é aquisição”.
Todo esse primeiro capítulo, que inicia evocando a estranheza que a pessoa tem diante de sua imagem envelhecida no espelho (“não sou eu esse velho, é outro”) e tão reiterada na literatura, constitui uma longa reflexão, com bases teóricas, sobre o velho e o sobre o envelhecimento, focalizados sob diferentes ângulos. Inobstante o referencial teórico, o autor consegue expressar-se numa linguagem acessível, capaz de atender às expectativas de qualquer tipo de leitor, não apenas às do especialista. O segundo capítulo, “Neurose, psicose, velhice”, segue o mesmo padrão, discutindo esses tópicos com bases teóricas.

O longo capítulo “Me chamam Lili” é um estudo de caso, que versa sobre uma paciente idosa, descrevendo as sessões de seu tratamento. Por último, no capítulo “Desmentir a demência”, o autor faz uma abordagem psicanalítica do mal de Alzheimer, doença devastadora que dia a dia vem-se tornando mais comum, contestando algumas das noções que a mídia tem propagado em torno dessa forma de senilidade.

Na conclusão, Jack Messy resume a trajetória de sua argumentação ao longo do livro e finaliza, sintetizando assim sua posição:

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